Artigo publicado hoje no Estadão: O Estado Democrático de Direito, por Michel Temer

O que se quis foi o espetáculo, violando a liberdade e a dignidade da pessoa humana

*MICHEL TEMER, O Estado de S.Paulo

04 de abril de 2019 | 03h00

O Brasil tem dificuldade para conviver com a democracia. Historicamente, períodos democráticos e autoritários se alternam. Por formação e convicção, sempre trabalhei por ela. Na advocacia, na Procuradoria, no ensino universitário, nas secretarias de Estado, nos livros publicados e na Assembleia Constituinte, minha pregação sempre foi a mesma: o sistema jurídico democrático deve ser rigorosamente cumprido.

No escrito deu certo. A Constituição federal de 1988 rotulou o nosso Estado como Democrático de Direito. Listou em 77 incisos do artigo 5.º os direitos individuais. Estabeleceu a separação de Poderes determinando a harmonia entre eles, mas cada qual com sua função, sem interferência do outro. Elevou ao nível constitucional “a dignidade da pessoa humana”. Por que me detenho nesse tema? Para revelar a disparidade entre a Constituição formal (o que está escrito) e o que se passa no cotidiano do Estado.

Vamos aos fatos atuais. Refiro-me à minha detenção por determinação de um juiz do Rio de Janeiro e aos episódios em que fui inserido.

Sempre vem a indagação: devo tratar dessa matéria apenas em juízo? Ou devo manifestar-me publicamente? Vi e vivi, leitoras e leitores, tantas imprecações, tantas inverdades, tantas ilações, tantas conclusões que partem do “parece que”, “tudo indica que”, “ a prova é superficial”… e a imprensa, com legitimidade, reverbera essas questões ditas nos autos dando a impressão de que sou perigoso marginal.

É verdade que tenho recebido de pessoas sérias, como editorialistas, colunistas e juristas, entre outros, gestos de apoio e solidariedade. Resumidamente (o mais será feito no Judiciário) explico o que se passa. Veja-se o caso da JBS. Trata-se da trama de um empresário orientado por um procurador da confiança do procurador-geral para que me gravasse, entregasse a gravação e saísse, livre e solto, do País sem nenhuma espécie de punição. Ou seja: “Incrimine o presidente da República que nós te perdoamos por todas as irregularidades que você e seu grupo cometeram”. Criaram frase falsa que não consta da gravação, nem poderia constar, porque nunca existiu. O procurador-geral fez essa versão para o veículo que a divulgou e que depois, ouvido o áudio, foi desmentida por outros meios de comunicação.

Os envolvidos nessa questão sabem disso e não terão condição de me desmentir, ou terão vergonha de fazê-lo depois do que me revelaram. Veja-se o caso da mala. O portador apanhou um táxi e, monitorado como se achava, não foi seguido. Sabem os leitores por quê? Porque a valise estava “chipada” e se esperava que ela viesse a ser entregue a mim, o que nunca aconteceu. Portanto, a mala não veio a mim, retornou com o dinheiro, e ainda assim fui denunciado como autor de um crime que jamais me poderia ter sido imputado. Fala-se que o empresário queria um benefício do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Não obteve! Estou dando breves exemplos para revelar o despropósito de todas as acusações. Aliás, o tal empresário e seus cúmplices foram presos em razão de gravação que equivocadamente mandaram à Procuradoria.

Não tendo sucesso nessa estratégia suja, procuraram outros argumentos: quadrilhão, jantar com diretor da Odebrecht, decreto dos portos, contrato da Alumi com uma empresa… Como se tudo o que empresas fizeram, uma delas com 30 anos de existência, fosse em meu benefício. Mas o exagero maior deu-se nos últimos dias. Num caso que estava no STF (Supremo Tribunal Federal), pendentes de julgamento três recursos interpostos pelos meus advogados, copiaram-se peças e a partir delas formou-se representação fantasiosa, que tratou de objeto de vários outros procedimentos, decretando-se minha prisão preventiva. Nem mesmo se instaurou um inquérito ou investigação pelo MPF (Ministério Público Federal): um “catado” de alguns inquéritos foi pretexto para prisão ilegal, numa evidente manifestação de arbitrariedade.

O que se quis foi o espetáculo e foi o que se viu, em clara violação da liberdade e da dignidade da pessoa humana. Pessoas que não se honram imaginam ser normal a desonra. Foi o que fizeram com a arbitrária prisão. Ao ser liberado por habeas corpus, os procuradores cuidaram velozmente de apresentar denúncia. E depois convocaram coletiva para divulgá-la, como haviam feito no dia da prisão, quando tiveram a desfaçatez de dizer que eu devia mesmo ser encarcerado como resultado de uma vida toda dedicada ao crime. Mais um espetáculo circense, pois o correto é falar nos autos. Mas eles querem ganhar a causa, não promover justiça. Juntam as mesmas questões em todos os inquéritos e processos num insuportável bis in idem. Em nenhum caso há materialidade justificadora deles. E agora denunciam, indevidamente, a mim e à minha filha por reforma da casa. Ela já depôs esclarecendo essa matéria. Antes era dinheiro dos portos, depois da JBS, depois da construção de Angra. Esses senhores não sabem o que fazem! Apenas sabem que é preciso, em busca do poder, obter um troféu: a minha cabeça. E é incrível a velocidade do MPF depois do insucesso da medida tentada no Rio de Janeiro.

Não vou me deter neles, pois o farei no Judiciário. O descumprimento das regras jurídicas, especialmente as atinentes aos direitos e garantias individuais, apenas servem para desorganizar a sociedade. Certamente, estes dizeres farão crescer a sanha daqueles que querem incriminar-me (veja-se a velocidade que imprimem aos casos em que mencionam o meu nome). Esta manifestação é para conhecimento dos milhares que me conhecem e me apoiam. Mais ainda, para preservar a ordem jurídica e impedir o desmonte do Estado Democrático de Direito. Ela se impõe como resistência, já que não é demais relembrar: “No primeiro dia roubaram a rosa do meu jardim e eu não disse nada…”

*ADVOGADO, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

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